“POBRES VÓS SEMPRE OS TEREIS EM VOSSO MEIO” (Mt 26,11)
Pobreza e Miséria no Mundo Bíblico
As palavras, entre aspas, do título desta postagem foram pronunciadas por Jesus, mas, a pobreza e a distinção de classes são bem recorrentes na história da antiguidade dos israelitas. I. é., antes dele as pronunciar. Contudo, antes de Cristo, já havia evidências e pistas sobre muitas tentativas e estratégias por parte de sacerdotes, profetas e demais lideranças político/religiosas para mitigar essas distinções classistas. O grito de protesto das lideranças religiosas era importante porque partia de autoridades que denunciavam a existência de pobreza e de miséria exatamente onde não deveria haver, ou seja, no seio da comunidade irmanada do judaísmo.
A perspectiva captada nos textos bíblicos é a da dinâmica social. Essa dinâmica de ascensão social que prevalecia no antigo Oriente, ao longo do primeiro milênio a.C. permitia uma relativa mobilidade (ascensão) social no século III a. C. Antes desse sistema do séc. III, porém, a Bíblia expõe o modelo original de posse da terra a qual era composta de famílias tribais. A partir do período dos juízes (inclusive) houve sucessivas alterações nas estruturas sociais, como monarquia, administração de grandes cidades, manutenção de exércitos e manutenção dos serviços religiosos, como o Templo, por exemplo, com sua complexidade de cultos.
Vários e importantes registros históricos apontam as causas da crescente onda de empobrecimento das populações palestinas. Entre elas estão a carga excessiva de impostos e tributos, os saques que os exércitos promoviam nas propriedades, o sustento do status quo político e religioso, intempéries climáticas naturais, doenças naturais e acidentais, guerras, invasões territoriais pelos exércitos conquistadores, etc.
As consequências desses eventos eram a perda das propriedades, aumento da quantidade de viúvas, órfãos, doentes, endividados, pessoas miseráveis e incapacitadas, entre outros efeitos. Essa onda socialmente degradante promovia outros fatos sociais como o distanciamento crescente entre ricos/pobres e opressores/oprimidos, ensejando o surgimento de protestos, tanto de pessoas, como nos casos dos profetas Isaías, Ezequias e quase todos os profetas menores, quanto de grupos formados, como o movimento de Jesus, no século I. Sim, o Movimento de Jesus, foi um movimento de protesto.
O conceito e a sinonímia utilizados em referência à classe dos pobres, no âmago da abordagem bíblica, obedecem a uma escala com enquadramento semelhante à pirâmide social que se usa atualmente, para distinguir as classes de pessoas que formam uma sociedade organizada, civilmente. A diversidade de termos para retratar a pobreza nos tempos bíblicos a.C., muitas vezes confunde os menos avisados que pensam tratar-se de polissemia terminológica e conceitual. Isso não corresponde à realidade. Segundo Ivoni e Haroldo Reimer (2011) cada termo refere-se à uma determinada classe de pessoas, conforme veremos abaixo:
a) Ébion e ani são termos utilizados para definir pessoas que ‘ficaram’ pobres e que têm como causas, perda de terra herdada, opressão e exploração, incapacidade física, guerras constantes e doenças;
b) Dal, define pessoas de categorias mais baixas embora com chances de ascensão social;
c) Ptochós serve para descrever contumazes mendicantes ou miseráveis ao extremo; e
d) Douloi para a classe de escravos, que se constituía em pessoas sem direitos e sem liberdade.
Ivoni e Haroldo Reimer (2011) desafiam à percepção que se deve ter, quanto a solidariedade com a pobreza, fora do contexto bíblico. Ou seja, é mister atentar para a máxima de que a espiritualidade judaico-cristã difere da greco-romana. Se no universo cultural judaico-cristão, misericórdia é um ato de generosidade para alguém de quem nada se espera, na cultura greco-romana misericórdia é para quem merece e da qual se espera algo em troca. Para isto os autores evocam os enunciados fatalistas e conformistas de Cícero (conceito romano) e Aristóteles (conceito grego).
Uma análise das matrizes sociais, Vétero-Testamentárias, mostram que as concepções judaico/cristãs não são fatalistas. Elas não condenam o pobre e o miserável à pobreza e nem à inexorável miséria. Pelo contrário, tais concepções acenam com perspectivas de ascensão social através da superação dos estados de pobreza e miséria. Tais concepções reforçam a hipótese que, embora os textos bíblicos reconheçam a realidade da pobreza, contudo eles apresentam caminhos para sua superação.
As possibilidades da superação dos estágios de pobreza e miséria são experimentadas, já, pelo movimento de Jesus, através da comunhão e partilha, como rupturas e superação das desigualdades sócio/econômicas. A ‘mesa’, em Paulo aos Coríntios (10,21), por exemplo, apresenta o sentido do cristianismo com seu modo peculiar de partilha, no século I.
A Terra É Um Dom de Deus ao Homem
Não se chega, nunca, a entender as causas da pobreza e da miséria, nos termos bíblicos, se não houver um aprofundamento do sentido e da importância da terra para os povos de Israel e dos países à sua volta.
Em se tratando do tema, Valmor da Silva (2003) garimpa importantes textos do Antigo Testamento e estabelece um link com os padrões da economia religiosa de agora. Inicialmente ele usa vários termos, em hebraico e grego, para delimitar os sentidos central e orbital em torno da palavra ‘terra’. Na língua hebraica temos, ‘adamah, (ser vermelho); ‘erez, (céu em oposição a terra e água); apar (terra seca); helqah (para se referir a porção, campo) e yabbaxah, (terra seca, solo árido), entre outros. No grego os termos são ge, (significa terra, ou mundo); oikumene, (com sentido de terra habitada); agros, (campo ou campestre) e kosmos (para designar ornamentos).
Se o personagem central deste tópico é a terra, então Deus assume, aqui, o ápice da discussão, porque é dele que a terra procede. Bará é a palavra chave da criação e expressa-se por mostrar uma divindade em ação em vez de, apenas, contemplativa.
A terra tem sua origem em Deus, portanto a Ele pertence e concede-a, como favor, ao homem que a explora como guardião, vigia e cuidador. “Sendo propriedade de Deus, nenhum ser humano tem o direito de negociar com ela e obter lucros” (SILVA, 2003, p.71), não podendo ser vendida, para sempre.
Por ter origem em Deus, ela é também sagrada e os indicativos inequívocos dessa sacralidade são atestados em diversos textos bíblicos grafados nos livros da Torah e do Primeiro Testamento. Principalmente na bem-aventurança que garante a posse da terra aos mansos, em Mateus 5.
A posse da terra ocorre através de dádiva e esta é acompanhada da promessa da sua posse desde que, é claro, a conquiste e mantenha, às custas de muita luta e sacrifícios. É que a terra deve ser conquistada antes de ser possuída e deve ser mantida depois de conquistada.
A manutenção da terra é assegurada pela perpetuação da herança. “Herança é legado, possessão ou bem recebido. Tem o sentido de presente recebido como recordação. Se alguém recebe um presente precioso, como herança de seus pais, esse presente não será objeto de negócio” (SILVA, 2003, p.74).
A terra é bênção, diz Silva, e esta vem acompanhada de outras bênçãos que a mantém, como a chuva e o orvalho. Se tantas bênçãos a acompanham, logo deve-se evitar o egoísmo e tratá-la como um bem comunitário (SILVA, 2003, p.75), com preitos de gratidão e com a consciência que o gênero humano é terra e terra é gênero humano, todos fundidos numa mesma genética.
Causas da Pobreza na Cultura Judaica
A terra e tudo o que dela se pode extrair, sempre foi alvo da cobiça das classes dominantes, na Antiguidade dos israelitas. Estas classes eram representadas pelas forças hegemônicas estrangeiras e seus vassalos, apoiada pela aristocracia judaica, sempre em oposição aos interesses das classes dos menos favorecidos, que eram a maioria. A gênese da pobreza, então, consistia em que o sistema de impostos e tributos visava estrangular os pequenos agricultores para que, endividados, humilhados e escravizados perdessem suas propriedades para os ricos, como registrado no Livro de Jó (24,2-3).
Nesse contexto injusto, as atenuantes capazes de mitigar a indignidade da pobreza miserável, só experimentaram algum equilíbrio sócio-econômico, entre elas, por causa do antagonismo religioso tradicional e do processo de formação/transmissão da mesma.
O pano de fundo que propicia o imbróglio entre dominantes e dominados, em Israel, se deve à grande parcela de terras cultiváveis, à regularidade e abundância de chuvas em regiões como a Galiléia, a consistente atividade pesqueira e a facilidade de contato com as populações mediterrâneas, entre elas, o próprio Império Romano através dos portos existentes na região costeira de Israel, como Cesaréia Marítima, Jope, entre outros. Em função disso, a atividade comercial teve três etapas:
a) local;
b) entre as nações vizinhas, no período helenístico (depois do séc. 4 a.C); e
c) novamente local, depois que Pompeu (séc. 1 a.C) dividiu a região.
Mas nem só de agricultura e pesca vivia o trabalhador palestino. Havia atividade artesanal, manufatureira e comercial. Por exemplo, no tempo de Herodes, O Grande, (fim do séc. I a.C.) a atividade de construção em larga escala “proporcionou trabalho e rendimento a muitas pessoas” (SILVA, 2003, p.129).
Contudo, o período de hegemonia ptolemaica (séc. III) promoveu uma mudança substancial na política econômica local. A economia, nesse período, estava voltada para atender aos interesses da casa real. O afã por aumentar as arrecadações, fez Ptolomeu instituir o arrendamento e subarrendamento de tributos a “particulares e sociedades” (SILVA, 2003, p.131) começando com este ato um processo de asfixia, o qual fez uma grande parcela das terras migrar, compulsoriamente, para as mãos de poucos latifundiários.
Conclusão
A priori, as palavras de Jesus, em Mateus 26,11, assemelham-se a uma sentença, determinação ou fatalismo, mas não é. Jesus não está sentenciando ninguém à pobreza e muito menos à miséria. O que Jesus está fazendo é a análise de um fenômeno social muito presente em sua época e que ele sabia onde estavam as causas. Ou seja, na má distribuição da terra, da renda, na ganância dos rapinantes e num sistema injusto, que oprime os mais fracos até levá-los à miséria.
A luta do Mestre em prol dos cansados e oprimidos, demonstrou que ele tomou atitudes práticas de inclusão social. Incluiu mulheres, crianças, doentes, possessos, deficientes físicos etc, no seu grupo e em torno de uma grande mesa, que é a sua Igreja.
REFERÊNCIAS
REIMER, Ivoni Richter; REIMER, Haroldo. Cuidado com as pessoas empobrecidas na tradição bíblica. Estudos de Religião, v. 25, n. 40, p. 181-197, jan./jun. 2011.
REIMER, Ivoni Richter. El milagro de las manos. Sanaciones y exorcismos de Jesús em su contexto histórico-cultural. España: Editorial Verbo Divino, 2011, p. 11-40.
STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. Tradução de Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004. p. 119-163.
SILVA, Valmor da. Concepções de Terra na Bíblia. Caminhos. Goiânia, v. 1, n. 1. 69-78, jan./jun. 2003.