AS “DICOTOMIAS” E O CORPO HUMANO À LUZ DE 1 TS 4,14

O que são dicotomias? Dicotomias referem-se a todo elemento que pode ser dividido em duas partes antagônicas. Por isto mesmo são chamadas, também, de ‘pares de opostos. Esses elementos têm, necessariamente, que estabelecer um antagonismo entre si, sob pena de não serem dicotomias. Exemplo: luz/trevas, noite/dia, bem/mal, bom/ruim, preto/branco, céu/inferno anjos/demônios, material/espiritual, espírito/corpo. Há quem afirme, até, que é impossível para as religiões se sustentarem sem esses pares de opostos.
De origem grega e do ponto de vista antropológico, a palavra dikhotomía indica uma classificação que é fundamentada na divisão de dois elementos que pertencem ao modo de ser (ontologia) das pessoas. Por isto, em se tratando das doutrinas helênicas, os dicotomistas acreditam que o ser humano é dividido em duas partes: alma e corpo.
A dicotomia alma/corpo é defendida por vários filósofos do período antigo  os quais defendiam que o corpo tem a finalidade, apenas, de manter o contato com a realidade sensível, em contraponto ao mundo inteligível, das teorias platônicas. Ou seja, enquanto o corpo estabelece uma relação com o mundo sensível, a alma é quem estabelece a relação com o inteligível, que, de fato, é que constitui a essência ou plenitude das coisas.
Foi fundamentada nas teorias gregas, que tinham o corpo como prisão da alma, que surgiu na Grécia  a doutrina filosófico/moral, conhecida como hedonismo, a qual afirmava que o prazer era o bem supremo da vida humana. O maior defensor e representante do hedonismo foi Aristipo de Cirene. ‘Hedonismo’ se origina do grego hedonê, e significa prazer, vontade.

Dicotomia x Tricotomia 
Quando os cristãos, por exemplo, defendem que o homem é tricotômico (formado por corpo, alma e espírito) os dicotomistas discordam, afirmando que alma e espírito são apenas sinônimos. Ou seja, são o mesmo elemento metafísico. Os cristãos, obviamente, se embasam na Bíblia, para defenderem o princípio da tricotomia, pelo que está escrito em 1 Ts 5,23 que diz “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Contudo, o pensamento grego não coincide com o pensamento judaico/cristão, quando o assunto é o corpo humano. Por isto, considerar que uma dicotomia estabelece um antagonismo entre duas partes como bom/ruim ou bem/mal, cria certa dificuldade para o estudo teológico cristão, a respeito de uma pessoa. Para os judeus e cristãos, o corpo não é um ‘mal’ que deva ser destruído.

O pensamento judaico-cristão vê a dicotomia entre corpo e alma, apenas do ponto de vista da matéria e do espírito, com suas diferentes naturezas . Enquanto o corpo é físico (matéria), a alma é metafísica, sendo que os dois se opõem, o que equivale a uma dicotomia.


O Corpo e a ressurreição
É bom que se diga que a valorização do corpo humano é uma prática muito antiga, dos hebreus. Desde  tempos idos quando nem sequer existia o judaísmo  José, antes de morrer, no Egito, fez os filhos de Israel jurarem que levariam seus ossos para a terra que eles habitariam, 400 anos depois: “Certamente Deus vos visitará, e fareis transportar daqui os meus ossos” (Gn 50,25).
Obviamente, o pensamento cristão tem base Vétero e Neotestamentária, a respeito da preservação do corpo. Se, para o sistema doutrinal grego o corpo é uma desgraça e sua longevidade deve ser desestimulada, a fim de libertar a alma, que é prisioneira dele, para o cristianismo o corpo é tabernáculo do Espírito Santo e precisa ser dignificado, honrado e santificado para que, por meio dele, o espírito não venha a perecer.
Logo, a forma de pensar a respeito do corpo depende totalmente da forma como entendemos a formação do ser. Se, como os gregos, entendemos que o ser humano é formado dicotomicamente e se dicotomia quer dizer ‘par de opostos’, deduziremos, a priori, que a alma é boa e o corpo é mau. Ora, se deduzimos que o corpo é mau deduzimos, igualmente, que ele precisa ser destruído, a fim de libertar a alma, que é boa. Esse tipo de compreensão altera a estrutura de qualquer religião.
Mas, como dissemos acima, não é esse o pensamento do sistema judaico/cristão. Quem visita a terra de Israel se depara com enormes cemitérios em volta de Jerusalém, com as tumbas de personagens famosos, como Raquel, o Rei Daví, Salomão, e vários profetas. São mausoléus bem preservados e intocáveis. Essas tumbas representam o respeito que os judeus têm pelos corpos dos seus ancestrais, tendo em vista a doutrina da ressurreição dos mortos.
Portanto, além da herança cultural herdada do povo judeu, soma-se a isto, no sistema doutrinário cristão, as palavras do Apóstolo Paulo aos crentes de Tessalônica: “Porque se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, assim também aos que dormem, Deus, mediante Jesus, os tornará a trazer com ele” (1 Ts 4,14).
Paulo indaga, ainda: “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? […] glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus” (1Co 6,19-20).
Isto mostra o quanto o cristianismo valoriza o corpo humano. Trata-o como algo bom, por ter sido Deus que o criou. A Bíblia não denigre o corpo humano, embora o Apóstolo Paulo o trate como “O corpo desta morte” (ITs 7,24). Embora o trate como um agente que facilita a prática do mal, “descreve-o como um aspecto da boa criação de Deus, que deve ser usado no serviço de Deus”.
Isto posto e à luz da Bíblia, só podemos entender que o ser humano não compõe uma dicotomia e sim uma tricotomia, visto que os elementos que formam sua ontologia não são, necessariamente, elementos irremediavelmente antagônicos, mas, relativamente harmônicos, e nem representam um antagonismo fatalista entre o bem e o mal.

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