BRASIL: FEITIÇARIA E RELIGIOSIDADE NA CULTURA POPULAR

A sólita história do Diabo na terra Brasil, é bem consumida desde o descobrimento. Aqui ele se instalou, se firmou e se institucionalizou. Laura de Mello e Souza, na obra O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial mostra que o Diabo desfruta de status mais elevado que Deus, nesta terra de entidades, duendes e deuses telúricos. Mesmo com Deus presente no Novo Mundo, para chegar-se a Ele sempre foi preciso, primeiro, passar pelo Diabo.

O Diabo e o inferno permearam o imaginário clerical dos séculos XIII a XIV, a respeito do “Novo Mundo” em perspectiva. Mas este não se resumia à expectativa de ser, apenas, uma terra distante, fantasiosa e coberta de espectros. Era, também, uma oportunidade de ‘renovar’ a história da humanidade. É que tudo que se sabia de mundo, resumia-se aos almanaques da Europa, da Ásia e da África. Tudo muito surrado e repetitivo.

O descobrimento e exploração da América representava, de fato, uma oportunidade de renovar a cultura dos mitos, das lendas, dos monstros, dos ícones, dos arquétipos e da visão antropológica europeia. As fábulas sobre seres conhecidos das viagens efetuadas por Montecorvino, Pian del Carpine, Marco Polo, entre outros exploradores marítimos dos séculos XIII e XIV, percorreram a Ásia e a região do Índico, beneficiando-se do sistema conhecido como “Pax Mongólica” – um período de calmaria ocorrido depois das grandes conquistas do império mongol.

A expectativa sobre os mistérios da América, fecundou a criatividade descobridora. O ‘ver’ a terra passou a ser melhor que, apenas, ‘ouvir’ dizer “de viagens fantásticas, de terras longínquas, de homens monstruosos que habitavam os confins do mundo conhecido”, como diz Souza.

Naqueles tempos idos, a Europa consumia a lenda do Preste João, governante virtuoso e generoso, que instigou a imaginação de gerações de aventureiros. Ele foi um potentado místico, que estendeu seus ideais de domínio cristão, para além da Europa; para os confins da Ásia e da África.

Os europeus davam conta de migrações geográficas entre eles e outros povos distantes e misteriosos. Descobriram que seria possível realiza-las. O descobrimento ensejaria, também, a exploração comercial de terras distantes e desconhecidas. Foi assim que o velho e ‘preciso’ Portugal, apropriando-se desse imaginário místico, encontrou modos de sair em busca do Novo Mundo.

A “Visão Edenizadora”

Como o Brasil era imaginado pelos portugueses? Ora, Portugal considerou, a priori, o lado pragmático das descobertas: a exploração comercial e a colonização do novo mundo, a pretexto de converterem seus habitantes à fé católica. Não é que os portugueses se achavam especialmente comissionados e enviados de Deus, para a missão cristianizadora dos povos?

Foi assim que o binômio economia e religião, deu movimento ao engenho português, que adotou o discurso capcioso de atribuir-se a responsabilidade divina do restabelecimento do Jardim de Deus, na terra.

Calhou que a beleza natural, a fertilidade, a vegetação exuberante, a amenidade do clima e o exotismo da terra Brasil, corroboraram, ainda mais, suas projeções mentais, associando essa exuberância ao cobiçado Paraíso terrestre. Até a flor do maracujá, com seu roxo influente, foi associado ao ideário místico e à Paixão de Cristo, segundo Rocha Pita.

Mas, se Deus estava presente nesse Éden, o Diabo também estava – e mais forte – na forma demonizada dos seres humanos e não humanos: homens bárbaros, animais, demônios etc. A terra era boa e Edênica, mas quem a habitava eram os espectros do mundo tenebroso e místico. Espécies de entidades e homens, a eles unidos espiritualmente, cuja força fora suficiente para expulsar Deus do Jardim, mantendo-o apenas ao seu derredor.

Estavam, assim, lançadas as bases do pretexto para ‘colonizar’, catequizar e dominar esses povos pagãos e ignorantes da luz. A faceta edenizada e paradisíaca da terra Brasil é reforçada por autores como Rocha Pita, Thevet, Léry, João de Vasconcellos, Frei Vicente do Salvador, Gandavo, entre outros.

A “Visão Detratora”

Algo, porém, preocupava os edenizadores: A faceta demonizada da terra paradisíaca era algo intenso. Na época (século XVIII), houve uma enxurrada de leituras negativas, produzidas e conhecidas como as obras dos “detratores do Novo Mundo”, (SOUSA, 2009, p. 62).  Por exemplo, o historiador italiano Antonello Gerbi, ao estudar as polêmicas sobre a América, voltou-se mais para a vertente negativa do que para a positiva, superestimando as pragas e os abrolhos, em detrimento do leite e do mel, da terra nova.

De Cardim a Buffon já se falava negativamente desta terra donde se dizia de árvores que não se “enraízam” e de pouca verdade em homens inconstantes. DePauw, levaria as considerações de Buffon às últimas consequências. Ele falava de uma natureza americana, onde os homens eram decadentes: “é, sem dúvida, um espetáculo grande e terrível”, diria ele, “o de ver uma metade deste globo tão desprotegida pela natureza, que tudo nela era degenerado, ou monstruoso”.

Os europeus dos séculos V e VI descreviam os humanos daqui, tais quais monstros. Isto, contudo, não durou muito. Essas imagens se desconstruíram, quando Colombo encontrou na nova terra, homens saudáveis, normais e bem constituídos, contrariando, frontalmente, as velhas lendas sobre os habitantes do Mundo Novo.

A curiosidade sobre a América tornava a mente dos europeus bem imaginativa. Por exemplo, D. Diogo, na Miscellanea Austral, apontou as serras de Altamira, na Espanha, como origem de uma gente bárbara, que comia carne humana. Diz que quando essas pessoas exóticas foram vencidas em guerra, pelos espanhóis, embarcaram sem rumo, até darem com as ilhas que agora se chamam Canárias. Depois tocaram as ilhas de Cabo Verde aportando, por último, nas terras que hoje é o Brasil.

Segundo D. Diogo, dessa saga se sobressaíram dois irmãos, um chamado Tupi e outro Guarani. O primeiro povoou a terra Brasil e o segundo, passando o Paraguai com sua gente, povoou as terras que hoje é o Peru. Na descrição dos habitantes da América, se percebe a razão do envio das marginalidades geográficas, homens selvagens, canibais, polígamos, incestuosos, assassinos, preguiçosos, para o Brasil.

Terra Propícia aos Demônios

Após a primeira visão, edenizadora e a segunda, detratora, vem a terceira visão europeia do homem sul-americano, bastante negativa, por sinal. Ele é visto como um sujeito inviável; um demônio. Segundo frei Vicente o demônio perdera o controle sobre a Europa, então cristianizada e encontrou um lugar propício na outra banda da terra: o Brasil.

“A infernalidade do demo chegou até a colorir o nome da colônia. Brasil, para esse religioso, lembra as chamas infernais, vermelhas”. Aqui, Satã obteve vitória, pois até fez prevalecer o nome apadrinhado por ele, esquecendo-se do nome de ‘Santa Cruz’.

Para piorar, as imagens místicas e arquetípicas de seres e lugares tenebrosos, do inconsciente coletivo, ganharam espaço e força depois da Divina Comédia com “O Inferno de Dante”. Nesta representação, o purgatório era o lugar intermediário entre o estado final de ‘gozo’ – céu –  e sofrimento – o inferno. “Estavam, pois, fadadas as colônias a servirem de imenso Purgatório aos pecados do Velho Mundo”.

“O quinto dos infernos”

Lugar de degredo, era o Brasil, doutro lado; para além mar. A compensação pelo labor para ‘domar’’ q terra era o quinto. Um tributo que correspondia a 20% de todo o ouro extraído do solo brasileiro e odiado pelos donos das minas auríferas, que passaram a chamá-lo de “o quinto dos infernos”, expressão usada até hoje para expressar ira e aversão, ao que consideravam extorsão.

Segundo a terceira visão, na terra mais propensa ao diabo que a Deus, não havia religião, mas religiosidade com requintes de sincretismo. Era uma cristianização deturpada por falta de assistência missionária, como prescrevia o Concílio de Trento. Essa visão foi avalizada pela elite dominante, europeia, para a qual “o sincretismo afro-católico dos escravos foi uma realidade que se fundiu com a preservação dos próprios ritos e mitos das primitivas religiões africanas”.

Refém dessa visão, não é leviano ratificar ser o Brasil, ainda hoje, a terra de ‘Mãe Preta’ e ‘Pai João’, sujeitos místicos das representações sincréticas da religiosidade e da etnia afro, aliadas às crendices nativas daqui. Não havendo ambiente propício à prática de uma só religião, ergueram-se altares a todas elas, pois assim, todas as divindades seriam atendidas, reverenciadas e adoradas. Com os altares, vieram as oferendas, os sacrifícios e as festas, às entidades e divindades.

Nesta terra de religiosidade sincrética, o culto a São Benedito tinha o mesmo valor e efeito que o culto a Ogum, Xangô ou Exu. Nem mesmo as religiões Afros eram uniformes, no Brasil Colônia. Os negros afluíam de todas as regiões da África e misturavam suas práticas em rituais e simbolismos que atendiam a todos, nas suas necessidades de magismo, religião, crença, fé, tradição, festejos, êxtase e sensualidade mística como elementos culturais de mitigação da saudade.

Terra do degredo e da saudade.

Segundo os clérigos daquele período, se o inferno era representado pelos negros e seus atabaques, pelos monstros da terra e pela resistência à escravidão’, a perspectiva de quem aqui residia era que, do outro lado a identificação com a metrópole, atraía a colônia para o polo paradisíaco.  I.é., uma forma de chegar ao paraíso era ir para a Europa, saindo do purgatório, que era aqui.

A distância da terra provocou suspiros de saudades, nos degredados. A saudade da terra é dor que não passa e nem tem cura. É a maior de todas as saudades, porque se aloja no coração, na compleição física e na disposição psicológica.

Vieram daí as festas tradicionais de cada povo dalém mar, em solo brasileiro. Dos nativos, portugueses, franceses, holandeses, dos outros europeus e, finalmente, dos negros. As festas iam sendo, sutilmente, assimiladas pelas diversas etnias daqui, formando um sentido lúdico, inconsciente, coletivizado e diferente. Foi-se criando, assim, um espírito lúdico, festeiro, pândego e misto de profano e sagrado, como marca do povo brasileiro.

Um mundo de sonhos e fantasias

No Brasil o fenômeno religioso é um marco de diversidade. Aqui há espaço para toda e qualquer manifestação do sagrado. Sejam por hierofanias, teofanias, cultos, ritos, mitos, lendas, entidades e divindades. Aqui o religioso se realiza desde o fetichismo até o monoteísmo e não é estranho que a mesma pessoa acenda velas para Deus e para o Diabo, no afã de se tornar simpático a ambos e assim, fugir da ira de um deles.

É possível ao bom observador, por exemplo, perceber trejeitos e expressões do culto afro, em pleno culto protestante, pentecostal e neopentecostal. É que as pessoas ao se converterem ao protestantismo, trazem consigo, sem se aperceberem, expressões simbólicas, religiosas, típicas dos rituais e cultos afros. Tais expressões vão desde rodopios e gestos intenso com mãos e pés até o cair semi-inconsciente, durante uma preleção manipuladora de algum pregador estridente. É comum que fieis dessas duas correntes protestantes entrem em êxtase ou transe, alegando intensa carga de espiritualidade, com expressões corporais espasmódicas.

Praticamente não há separação entre eventos sagrados e profanos. As festas de ambas as estruturas (profana e sagrada) tornam-se eventos mistos, onde o profano e o sagrado convivem harmoniosamente, na terrade um Deus sem cor, raça ou nacionalidade.

O sincretismo, representado pela mistura de todos os ‘sagrados’, une-se facilmente à força do profano, num convívio reconhecidamente harmonioso. São características que tornam as festas populares, mistas (de sagrado e profano), como Carnaval, São João, São Pedro, marcha para Jesus, romarias de Aparecida, (SP), de Trindade (GO), de Juazeiro do Norte (CE), de Círio de Nazaré (PA) etc., em eventos tidos como os ‘maiores do mundo’, pelo seu caráter sincrético.

O espírito festeiro do povo brasileiro parece mergulhá-lo num mundo diferente e sonhoso; um mundo que parece pairar entre as esferas da fantasia e da realidade. Assemelha-se com uma fuga do real. Poucas coisas são levadas a sério por aqui.

Aqui temos fome, pestes e epidemias típicas de um país tropical. Temos violência branca, negra, direta, indireta: contra negros, mulheres e homossexuais em níveis alarmantes. Temos extermínios de jovens a níveis insuportáveis. Os níveis de corrupção na política e dos principais agentes econômicos, são extravagantes. Mesmo assim o povo sorri à solta, talvez esperando que tais e graves problemas sociais venham a ser resolvidos pelo acaso ou ‘jeitinho brasileiro’.

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