MARX E A UTOPIA DE UM MUNDO SEM DEUS

E inegável que a filosofia marxista é singular nos seus enunciados da dialética materialista. Mais que isso, suas teorias socialistas eram uma peça doutrinária, introdutória a um sistema político bem mais perfeito, ou seja, o modelo comunista. Este modelo político chegou a ser implantado, parcialmente, em nações como Cuba, Rússia, Armênia, a antiga Alemanha Oriental, entre outros, e em blocos de países como a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) depois da Revolução Bolchevista, na Rússia pós 1917. Em suma: o socialismo seria a porta de acesso para o comunismo, um sistema de governo, perfeito e pleno de felicidade, sem Estado e sem Deus, se tivesse dado certo.

Porém, existe uma corrente filosófica que se opõe, radical e sistematicamente, aos enunciados de Marx. Trata-se do pensamento filosófico idealista de Hegel, cuja essência é a dialética do espírito. Enquanto para Marx, a filosofia precisa incidir sobre a realidade, para Hegel é o contrário: a realidade é que se faz filosofia.

Sendo assim, no mundo sensível, fica bem evidenciada a diferença entre o pensamento filosófico de Hegel e o de Karl Marx pois, enquanto Hegel ficou nas hipóteses – por ser impossível aferir as coisas metafísicas – Marx materializou suas teses. Em suma, o pensamento de Hegel não pode ser aferido; o de Marx sim.

Afinal, qual das duas correntes dialético/filosóficas prevalece nas estruturas mentais e históricas do pensamento Ocidental: a filosofia idealista (hegeliana) ou a filosofia da realidade (materialista) de Karl Marx?

Atendo-me a Marx (não pretendo discorrer sobre a dialética do espírito, de Hegel) veremos que a filosofia marxista é construída dialeticamente, mediante a práxis humana. Isto constitui, a priori, a razão das suas teorias socialistas/comunistas. A premissa é: o homem produz conforme as suas necessidades e, em compensação, tem acesso e direito de consumir, de tudo que produz, exercendo assim, seu papel de sujeito e não de objeto.

         O fator ‘história’ no processo de produção

Há, ainda, um importante elemento pelo qual se apreende a essência do pensamento de Marx: a história. Esta, em Marx, se inicia quando o homem, no propósito de satisfazer suas próprias necessidades, abre luta com a natureza, a partir do que, descobre-se como um ser produtivo e, portanto, um ser-presente-no-mundo. O ser-presente-no-mundo é somente aquele que produz.

O homem que não produz é um ser-alienado; um ser ausente-no-mundo. O primeiro faz história; o segundo não. Deus, inclusive, fica fora desse processo, motivo pelo qual o comunismo é um sistema político gregário de ateus. Para Marx, o comunismo, no seu apogeu, não necessita de Estado e nem de Deus. Estes são desnecessários, à medida que o homem tem consciência de si e do seu papel como sujeito desse processo histórico.

A premissa marxista do ser-presente-no-mundo coincide, por sinal, com o enunciado de René Descartes, para quem a existência humana é diretamente proporcional à percepção que este tem dos fenômenos que o cercam. Quem não lembra da clássica afirmação cartesiana, “Cogito ergo sum”? Com este famoso enunciado (“penso, logo existo”) ele explica o sentido da existência humana, i.é., o homem só existe à medida que se percebe no mundo.

Mas, voltando para Marx e sua dialética materialista, é temerário emitir juízo de valor sobre seu sistema de pensamento, sem que antes se faça uma análise substancial do contexto sócio/cultural e histórico da sua cosmologia. Quem pode afirmar que Marx acreditava e/ou vivia piamente o que tão magnificamente expôs na obra O Capital? (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.  Vol. 1, Livro 1).

Contudo, Marx pecou ao não prever os paradoxos do comportamento humano. Não poderia ter passado da sua percepção, por exemplo, considerar que o homem é, ontologicamente, ganancioso, malicioso, invejoso, competitivo, autofágico, egoísta e amante de si mesmo. O pecado de Marx, na elaboração ideário socialista, foi presumir que conhecia a natureza humana.

Ele esqueceu que o ser humano, em vista da sua imprevisibilidade, tende a instaurar, sempre, o caos nos seus projetos, principalmente quando estes são testados, na prática. É que a realidade – base do pensamento marxista – é a ferramenta mais eficaz para confirmar ou desmontar as engrenagens das teorias, dos ideais e das ideologias. Só se pode prever uma coisa, da natureza humana: que ele sempre será imprevisível. Esta é uma certeza, já bastante positiva: a indefectível imprevisibilidade de si mesmo.

Sócrates (Sec IV a.C) pronunciou uma frase antológica e que até hoje ecoa nas consciências: “Nosce te ipsum” (conhece-te a ti mesmo). Trata-se de um preceito muito repetido por Thomas Hobbes, na obra, Leviatham (1650) e interpretado com maestria por Renato Janine Ribeiro, na obra, Ao Leitor Sem Medo. Se essa expressão é tão importante, é porque se apresenta apenas como utopia, horizonte, quimera. No dia que o homem chegar ao conhecimento de si mesmo, a sentença aristotélica estará vazia, para sempre.

         Por que não deu certo?

Ora, é fato notório que a causa da ruína do império soviético, de ideologia marxista, foi a constatação, na prática, do aspecto da ‘incontrolabilidade’ do comportamento humano, se considerados os vieses dos desejos e paixões. A constatação de que havia elite no comunismo soviético e que ela impunha ao povo uma carga que nem de longe gostaria de ver às suas próprias costas, foi um destes fatores de imprevisibilidade, capaz de causar um choque de realidade.

Marx deveria ter previsto que hipocrisia, desfaçatez e dissimulação, são males crônicos do comportamento humano. Que o homem, via de regra, só se mostra transparente se isto lhe for conveniente. Logo, as doutrinas marxistas da não necessidade de Deus, de religião, de Estado e de leis civis, num sistema político/comunista, demonstrou não passarem de ilações e falácias.

Se o cerne da filosofia marxista era uma crítica ao idealismo – principalmente de Hegel – deve-se considerar, também, que o marxismo é um rosário de ideais inatingíveis pelas sociedades dos homens, infalivelmente competitivos, egoístas e imprevisíveis.

A sociedade perfeita, idealizada por Marx, onde todos pudessem produzir segundo as suas capacidades e consumir segundo as suas necessidades, não passou de uma doutrina ideológica quimérica, como muitos outros ideais que já se fizeram notórios durante todo o processo histórico da humanidade, que não deram certo. Impérios históricos e fenomenais como o babilônico, o medo-persa, o greco-macedônio e o romano sucumbiram, tragados que foram, pelos vícios humanos.

Não deram certo porque ideais – depois transformados em ideologias – nos transmitem a sensação de serem apenas horizontes. Como disse Rubem Alves, horizontes são perspectivas inatingíveis. Horizontes alcançados e explorados, deixam de ser horizontes. Portanto, enquanto houver horizonte, haverá quem o busque. Marx não previu que o homem principia a morrer, quando descobre que nada mais há a conquistar, pela peleja.

O comunismo, segundos as concepções de Marx, nunca deu certo. Não deu certo por causa da imprevisibilidade humana. O homem é especialista em espalhar o caos, como já afirmamos. Para que as relações capital/trabalho/homem/produção, pudessem funcionar, eliminando-se o ‘capital’ dessa ordem, seriam necessários vários fatores, como por exemplo, a inexistência do espírito de competição, de preguiçosos, de ociosos, de pessoas submissas e subservientes, em contraponto aos dominantes.

Marx pretendia, ainda, algo utópico: igualdade absoluta entre as pessoas, no modelo político comunista. A utopia consiste em que é impossível estabelecer isonomia entre pessoas empreendedoras e indolentes. Pessoas competitivas, com outras reconhecidamente passivas.

O que se faria contra os que não gostam de cumprir leis se, como afirma Thomas Hobbes, o homem só cumpre leis, por força da espada? Como satisfazer os anseios pelo transcendente, se o comunismo descarta a necessidade de Deus?

Existe, ainda, outras questões: em que pé ficaria, no comunismo, a relação conceitual dicotômica, rico-pobre, no contexto da humanidade? Todos seriam ricos ou todos seriam pobres? Ou então: eliminar-se-ia a pobreza ou alterar-se-ia a semântica?

Assim mesmo reconhecemos que o marxismo influenciou, positivamente, os mais diversos setores da atividade humana ao longo dos séculos XX e XXI. Essa influência passa pela política, pelas relações sindicais, por uma nova leitura dos fatos sociais, éticos, morais, de estética, de história e econômicos.

Inegavelmente, os trabalhadores muito lucraram, também, com remuneração mais justa e com uma menor carga horária de trabalho, no perseguido binômio trabalho e diversão.

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