SAÚDE E ESPIRITUALIDADE NO TEXTO DE 1Co 9,24-25

Sirvo-me de duas palavras gregas,  Hyguié e hyguiáino, pesquisadas por Ivoni e Haroldo Richter Reimer (ESTUDOS DE RELIGIÃO, jan./jun. 2011 p. 11), eméritos professores do Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da PUC,GO, para refletir sobre a questão da sanidade física e mental provenientes do exercício físico e espiritual na interpretação de 1Co 9,24-25.

Os gregos sempre foram entusiastas do atletismo e, sendo Paulo, um judeu fortemente influenciado por essa cultura, fez uso, assim, da figura dos atletas do mundo antigo, como modelos de disciplina e renúncia, em analogia à vida do cristão que se empenha pela harmonia físico/mental como condição à vitória. A título de informação, “Corinto era famosa pelos jogos ístmicos, celebrados de dois em dois anos. Estes (sic) eventos desportivos inspiraram Paulo para deles se servir como exemplo” (BÍBLIA SAGRADA AFRICANA, 2003, p. 1999).

A riqueza semântica e conceitual desses dois termos hyguié/hyguiáino é incrível. Traduzidas desde o século V a.C. estas duas palavras, significam ‘saúde’ e ‘saudável’. Mas, nem só isto. Elas, além de serem utilizadas para descrever o estado físico e mental de uma pessoa, em outro plano, têm o significado de ‘verdadeiro’ e ‘justo’; referindo-se às noções de vida e paz. São palavras utilizadas, ainda, quando se deseja boa vida, pós-morte, a alguém. Também estão associadas à ação da cura através das práxis médicas e religiosas ou das duas juntas, visando a saúde do corpo e da alma.

Isto não é pouco, considerando-se que ‘saúde’ tem tudo a ver com ‘harmonia’, ‘ordem’, ‘vida’, entre outras expressões que definem tudo que é positivo, na ontologia humana. O cosmos é uno em ‘ordem’ e embora seja uma construção de opostos, estes não entram em choque. Deste modo, a ‘saúde’ é, também, representada pela ‘ordem’, enquanto a enfermidade o é pelo ‘caos’. Por serem ‘opostos’, quando um entra o outro sai.

 A analogia que Paulo faz entre o atleta e o cristão, é, pois, um convite à saúde mental que resulta em ordem e harmonia, corporal e mental; vida boa, inclusive no pós-morte.

A Questão da Saúde na Antiguidade Bíblica

O texto de 1Co 9,24-25 mostra o papel primário na busca dessa harmonia do ser, através de importantes preceitos que ajudam a firmar os valores espirituais e físicos como fatores imprescindíveis para a criatividade, autodisciplina e bem-estar do quadro social. “Não sabeis que os que correm no estádio, correm todos, mas só um ganha o prêmio? Correi, pois, assim, para o alcançardes. Os atletas impõem a si mesmos toda a espécie de privações: eles para ganhar uma coroa corruptível; nós, porém para ganhar uma coroa incorruptível”.

O cuidado com a saúde do corpo e da alma acompanha a trajetória histórica do judaísmo e suas prescrições religiosas acerca das leis da pureza, desde o Patriarca Abraão. O primeiro pacto entre Deus e o patriarca dizia respeito à saúde do corpo, ao compromisso moral e à disciplina, através do doloroso ato circuncisório (Gn 17,18). Na Primeira Aliança, o equilíbrio entre corpo e alma era conseguido através dos interditos alimentares e de pureza do corpo, concomitante à observância dos ritos da Torah, numa forma de vida voltada para a disciplina e para o cumprimento das regras

A saúde corporal era buscada através de importantes instrumentos coercitivos da Lei judaica, prescritos na Torah e interpretados através do Midrash Halachá (GIGLIO, 2000, p. 19). Os interditos e prescrições eram observados com rigor através dos “ritos de purificação ocasionalmente necessários (por exemplo, depois de sepultamentos, partos, contatos com o impuro) e outros ritos repetidos regularmente (como por exemplo, após a menstruação e a relação sexual” (STEGEMANN, 2004, p. 170/1).

O período do nomadismo dos hebreus, que vai de Abraão (aprox. 1921 a.C.) até a conquista da terra (1160 a. C), por sua natureza, exigia constantes deslocamentos e atividades físicas, os quais dispendiam, naturalmente, muito esforço físico e alimentação adequada, motivo pelo qual o exercício físico sistemático não era muito recorrente nos Escritos do Primeiro Pacto (Antigo Testamento).

Sociedade Saudável

Na Segunda Aliança, além de se manterem certas leis do Antigo Testamento, a elas foi incorporado um novo conceito de saúde, representado pela necessidade de exercício físico, presumivelmente por conta de um novo modelo social mais sedentário que o anterior. O modelo social sedentário foi fruto do estabelecimento do povo judeu nas cidades conquistas do povo cananeu.

Outro fator de relevante destaque, com relação aos cuidados com o corpo, surge no próprio corpo doutrinário da fé cristã. É conhecido de todos, que o tratamento dispensado ao corpo físico ganhou foco diferenciado e reconhecida importância, no credo do próprio cristianismo que passou a considerá-lo como elemento básico no conceito tricotômico do ser humano.

Essa valorização do corpo físico, pelo cristianismo resulta, primariamente, do evento da ressurreição corporal de Cristo, segundo a Bíblia. Fundamentado nesse evento teofânico, Paulo exorta os cristãos que aguardem com paciência “a redenção do nosso corpo” (Rm 8,23) através da ressurreição dos mortos e da sua consequente glorificação, em tempos vindouros. 

A recomendação paulina é um contraponto teológico para com algumas correntes filosóficas: platônica/helenista/hedonista, segundo as quais o corpo devia ser desprezado, já que ele é o prisioneiro da alma, à medida que esta sempre quererá libertar-se dele.

A necessidade de incorporar o exercício físico ao novo conceito de saúde, na Segunda Aliança partiu, igualmente, da nova visão de sociedade. Se antes da posse da terra a sociedade era, primariamente, nômade e/ou campesina, depois que da terra se apossou, passou a ser essencialmente sedentária e campesina.

Este é um fato bem presente na percepção paulina, em sua analogia de I Co 9,24-25. O sedentarismo afeta a autodisciplina e a resistência física e mental, comprometendo, assim, a manutenção de qualquer estrutura social saudável, produtiva e, inclusive, coloca em risco a soberania nacional de cada nação.

A analogia paulina, então, põe em foco a ‘recompensa’, como eixo principal do texto exposto.  Ele diz sobre o prêmio: “Correi de tal maneira que o alcanceis”. A recompensa pela ‘comissão’ é tão real quanto a recompensa pela omissão. A primeira é positiva e contribui para a pujança e longevidade de um povo, A segunda recompensa é negativa capaz de destruir a autoestima de qualquer sociedade, levando-a indolência e posterior extermínio.

Ou seja, segundo Paulo existe uma recompensa real pelo esforço do atleta, que é o seu ‘prêmio’, da mesma forma que existe uma recompensa para o exercício espiritual que é a incorruptibilidade.

A omissão ou negligência dessa conduta ativa, ou seja, a negligência com o corpo, por falta de exercício físico, traz várias consequências como enfermidades físicas, mentais, ‘afrouxamento’ da autodisciplina, elementos extremamente insalubres para uma sociedade bem constituída.

Conclusão

Saúde é um bem composto de partes, as quais formam um conjunto. A saúde do corpo acompanha a da alma e vice-versa. Saúde física sem saúde mental é saúde parcial e incompleta. Assim, a sanidade física e mental é o prêmio por uma vida dedicada aos exercícios necessários ao corpo, à autodisciplina e ao exercitamento espiritual. Paulo recomenda ainda esse cuidado de mão dupla: “Cuida de ti mesmo e da doutrina” (1Tm 4,16).

GIGLIO, Auro Del. Iniciação ao Talmud. São Paulo: Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2000;

REIMER, Ivoni Richter; REIMER, Haroldo. Cuidado com as pessoas empobrecidas na tradição bíblica. Estudos de Religião, v. 25, n. 40, p. 181-197, jan./jun. 2011;

STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. Tradução de Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.

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