TEODICEIA, SALVAÇÃO E EMPODERAMENTO RELIGIOSO

Certamente alguns leitores desta matéria, ao se depararem com o termo ‘teodiceia’, se perguntarão, em primeiro plano: qual o significado dessa palavra?  Nada mais natural, já que se trata de um termo especificamente criado com a finalidade de tentar explicar a coexistência de um Deus tão poderoso, perfeito e justo, com a realidade do mal, no mundo. Afinal esta não é uma palavra tão recorrente, do nosso cotidiano.
Resumiremos assim, então, o problema do mal no mundo e seu contraponto à justiça de Deus: o mal existe. Mas o bem também existe. O livre arbítrio proporciona ao homem, escolher entre um e outro. Para os que escolhem o bem, Deus reserva a salvação, como justiça. Para os que optam pelo mal, Deus reserva a condenação eterna, também como ato de justiça. É desta forma que Deus resolve o problema do mal no mundo.

Logo, o termo ‘teodiceia’ provém do grego – theós, Deus e – dik, justiça. Simplificando, isto quer dizer, literalmente, “justiça de Deus”. Teodiceia e salvação fazem parte de um exame racional sobre como os deuses são concebidos no imaginário comum, bem como do surgimento das ideias respectivas de pecado e salvação no aspecto religioso.

Escolhendo a que deuses servir

Em se tratando do fenômeno religioso, não são os deuses que chamam e escolhem as pessoas para segui-los e instá-los à formação de uma religião. Isto pode até acontecer, mas em caráter particular. Em sentido geral, porém, acontece o contrário. São os indivíduos, agrupados socialmente, que adotam suas divindades, para servi-las, depois que constatam a sua força e poder.

Por ocasião da saga de Abraão, na terra de Canaã, tanto os cananeus escolheram IAHVEH, como divindade, depois que viram sua ação poderosa na proteção de Abraão, como os hebreus escolheram deuses nativos para servi-los, a exemplo de EL e Baal, divindades cananeias adotadas pelo povo hebreu (Js 24,14,15).

Afinal existem muitas divindades catalogadas pelo senso comum, nas diversas culturas globais. Esta por sinal é a base de todos os sistemas religiosos politeístas. Portanto não são os deuses que escolhem seus seguidores, sãos as pessoas que escolhem quais divindades querem seguir. Quem não se lembra de Josué insistindo com o povo hebreu sobre quem queriam servir, se o Deus Iahveh, que os salvou do Egito ou se os deuses das nações vizinhas que nada fizeram por eles? (Js 24,14-15).

A autoafirmação das divindades

As divindades dos sistemas religiosos fisiologicamente formados, surgiram primeiro que estas. Os deuses precisaram passar por muitas provas da sua capacidade de operar milagres e prodígios, antes de serem aceitas como divindades familiares, tribais e/ou nacionais.

Por conseguinte, o desenvolvimento e a consolidação de um grande sistema religioso são decorrentes da ideia de uma divindade central, presente no senso comum. É em torno que orbitam as demais divindades e entidades de menor prestígio. Ao se tornar mais forte que as outras divindades, ela se sobressai dos demais deuses locais e regionais, assumindo, assim, o protagonismo. Esse deus protagonista submete os demais (divindades menores) formando um panteão como uma divindade-mor, com ascendência sobre os demais. Temos exemplos com as divindades EL, em Canaã, Marduck, na Babilônia, Amon, no Egito, Zeus, na Grécia, que ostentavam o status de divindade principal nessas sociedades. O caso mais clássico que conhecemos é o do Deus de Israel, que foi se consolidando aos poucos como o Deus, até se tornar único, iniciando, assim a fase do monoteísmo judaico.

Qualquer divindade local, ou regional, só se consolida em meio ao imaginário comum, depois que ela supera as demais divindades concorrentes. Ela se firma exatamente quando demonstra maior capacidade de atender os anseios dos seus seguidores, em forma de oferta religiosa. Uma religião que não tem o que ofertar aos seus fiéis, não subsiste porque demonstra, concomitantemente, que sua divindade é fraca ou inoperante. Kant disse que uma religião tende a não se sustentar se não houver milagres, pois são estes que fazem aumentar a fé nos deuses.

Ocorre, então, que as ofertas propostas por um sistema religioso são proporcionais ao poder que sua divindade possui de operar milagres, prodígios, maravilhas, curas; oferecer proteção, prosperidade, fertilidade etc. Enfim, suprir as necessidades do crente, no aquém e no além.

status quo do cristianismo

E o cristianismo nosso de cada dia tem o mesmo modus operandi? Sim. O cristianismo não foge à regra comum a todo o fenômeno religioso, no que diz respeito ao surgimento e fortalecimento de uma religião, como aparelho social. Quando Jesus iniciou seu ministério havia em Israel, muitos fariseus, escribas e saduceus com seus ensinos de muita retórica e nenhuma prática em forma de milagres, curas e libertação. Com relação a Jesus, contudo e diante do ensino e dos sinais que acompanhavam suas palavras, “todos ficaram admirados com seu ensinamento, pois ele os ensinava como quem tem autoridade, não como os escribas” (Mc 1,22).

Ou seja, a oferta religiosa geralmente busca atender aos anseios do indivíduo religioso. Logo, a capacidade de atrair e manter adeptos são fatores determinantes para o fortalecimento da autoridade e do poder de uma divindade. No Nordeste brasileiro (principalmente) as moças solteiras costumam homenagear o ‘santo casamenteiro” (Santo Antônio) por ocasião do seu dia. As homenagens e oferendas são acompanhadas de pedidos de casamento os quais devem ser atendidos antes dos próximos festejos. Quando as moças não são atendidas elas colocam sua imagem de cabeça para baixo em um forno aquecido. Esse ritual simbólico é uma forma de punir o ‘santo’ pela sua inoperância.

O que o fiel espera da sua religião?

Voltando ao conceito de teodiceia, portanto, segundo Max Weber (1999, p. 351) ela “faz parte universalmente das causas determinantes do desenvolvimento religioso e da necessidade de salvação”. Ou seja, além dos anseios dos indivíduos por benesses no ‘aqui e agora’, existe uma expectativa mais forte ainda, que é a expectativa de salvação. A salvação faz parte das expectativas do ‘além’, de todas as pessoas. Sem esse horizonte chamado ‘além’ toda a vida perde o sentido.

O desenvolvimento religioso se dá, por conseguinte, quando a religiosidade avança do campo do simples fetiche, para o campo da magia; do campo da magia para o campo da religião formada e mais bem elaborada e, finalmente, do campo da religião politeísta para o campo do monoteísmo.

Esse novo formato religioso propicia o surgimento de um outro forte elemento constitutivo, que é a ética. A ética não é um simples corolário de uma religião desenvolvida. Ela é a base de sustentação dessa religião, visto que é determinante para a conduta e a agregação de todos os fiéis a ela vinculados. Por isto a ética é, geralmente, um elenco de leis, mandamentos, preceitos, regras e convenções atribuídas aos deuses. A obediência a esse código ético é fundamental para um sistema religioso bem estruturado e longevo.

Por ser atribuída à respectiva divindade, o corpo ético, constituído de mandamentos, ordenanças, preceitos e convenções da respectiva religião, tal código de ética não pode ser subvertido, sob pena de o subversor ser declarado pecador, por ter contrariado a vontade e as determinações da divindade. “O pecado é um rompimento da fidelidade ao deus, uma renúncia apóstata às promessas divinas” (WEBER, 1999, p. 352).

Contrariar a vontade da divindade representa um ato que precisa ser reparado, visto que esse ato é passivo de punição. A punição deve ser evitada e temida, pois expõe o fiel à ira da divindade. Ser abandonado pela divindade significa sério risco à sobrevivência, à segurança, à prosperidade e, finalmente à vida no além (salvação). É assim, pois, que surge a ideia de salvação.

Conclusão

Para Weber a teodiceia se constitui o maior problema de uma religião. Contudo a noção de salvação pode variar de uma, para outra religião, dependendo da oferta religiosa. Essa variação pode ser assim expressada: “de que” preciso ser salvo? E, “para que”, ser salvo? As respostas podem refletir o desejo de superar o fracasso, os males do mundo, a preservação ambiental etc., bem como o desejo de habitar o “além”.

Se aplicarmos esses princípios weberianos aos conceitos cristãos, veremos que o cristianismo se sustenta, em grande parte, na promessa que Jesus fez aos seus fiéis em Jo 14, 1-4. A promessa de Jesus garante a salvação da condenação eterna e um lugar para morar, ao lado dele. As promessas de Jesus, neste sentido, é uma poderosa oferta religiosa que ele faz aos fiéis, para o além, sem embargo de todas as demais que ele promete que se cumprirão já aqui, nesta vida.

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