VASTI E A LUTA PELA DIGNIDADE FEMININA
A festa do rei
O Livro de Ester (cap. 1 e 2) faz ligeira referência à história da rainha Vasti. A razão dessa economia é que ela não protagoniza a trama. Vasti (Vashti, em hebraico) significa “beleza”. Era filha de Beltsasar, neta de Nabonido e bisneta de Nabucodonozor. Flávio Josefo (2009) a trata como uma mulher de rara beleza e personalidade forte. Foi rainha de um vasto império (desde a Pérsia até à Etiópia) por ser esposa do rei Assuero, talvez, o mesmo Xerxes, da história secular (JOSEFO, 2009, p. 519) que governou sobre 127 províncias, por 20 anos (485 a 465 a.C.) como sucessor do rei Dário I, da Média.
Alguns documentos da Grécia antiga tratam Vasti como Amestris. Segundo a história ela foi deposta entre 484/483 a.C. aparecendo depois como a rainha-mãe, no reinado do filho, Artaxerxes, sucessor de Xerxes, indicando isto que ela foi reabilitada pelo filho.
Na semana fatídica para Vasti, Assuero estava brindando os cortesões, os chefes dos seus exércitos, os príncipes e governadores das províncias (Et 1,3) com uma festa que durou sete dias (Et 1,5). A intenção de Assuero era impressioná-los exibindo a riqueza, o luxo e o esplendor imperial (Et 1,4), personalizados na belíssima Vasti.
Considerando que a festa era insuficiente à satisfação da sua vaidade o rei Assuero, ébrio, propôs exibir sua bela esposa para os comensais e beberrões, ali presentes. “Bebia-se sem constrangimento, pois cada um bebia o que queria, conforme ordena o rei aos seus mestres-sala” (Et 1,8). Segundo a Bíblia, a rainha teria que se apresentar, coroada, perante os convidados, sem acrescentar outros detalhes da sua indumentária.
Desfilar nua?
Em paralelo à festa promovida pelo rei Assuero, seu esposo, Vasti promovia outra festa para as esposas dos governadores das províncias, no palácio real, ocasião em que, fugindo aos padrões de submissão feminina, da cultura persa de então, ela se recusou a atender ao pedido ousado de Assuero.
Pela reação negativa da rainha, percebe-se que a atitude do rei fugia a certo padrão de comportamento da realeza e, por isto, ela não o atendeu. Talvez ele bebeu em excesso e estava comprometendo algum tipo de protocolo real, para tais ocasiões. Lúcido, talvez o rei se mostrasse mais digno e honroso com ela, do que se mostrou. Segundo Flávio Josefo (2009, p. 520) Assuero “nutria uma violenta paixão pela rainha, por causa de sua extrema beleza”.
O não comparecimento à festa, pela rainha Vasti, decorreu, assim, da estranheza quanto ao inusitado pedido real. Para alguns historiadores, o pedido do rei Assuero era para ela desfilar nua perante os convidados, embriagados, tendo em destaque somente a coroa imperial, na cabeça.
A atitude de Vasti é antagônica à de seu marido. Ela demonstrou sobriedade e gestos nobres, enquanto ele mostrou-se destemperado e leviano. Seu exibicionismo não tinha limites, pouco importando expor ao ridículo a pessoa que lhe era a mais importante do reino. A reação da rainha corresponde à atitude de uma mulher muito digna e idônea e que, pelo visto, já havia tido experiências negativas e frustrantes com o comportamento de Assuero. Digamos,a priori, que ele já havia perdido a moral com ela.
Enquanto ele se mostrou incontinente, Vasti se mostrou sóbria, a ponto de não aceitar expor-se perante os cortesões pândegos, como objeto dos caprichos de um rei histérico, ainda que fosse seu esposo e, ainda por cima, sabendo das consequências da sua fúria, pelo ego ferido. A postura dela é nobre e digna de louvor, enquanto ele demonstra comportamento pueril e impróprio a um monarca.
Deduzimos pelo seu histórico dinástico, que Vasti era muito respeitada. Ostentava gestos reais, de berço. A festa que promoveu, proporcionou-lhe conquistar, mais ainda, a admiração das demais mulheres, devido a postura altiva como se portou entre elas. Sua recusa em apresentar-se como objeto, reforça a imagem de ser uma mulher consciente do seu valor e do seu papel no Império Persa.
Sua coragem e determinação em negar-se ao rei lhe custou a coroa. As mulheres persas (a Pérsia corresponde, atualmente, ao Irã) tinham (ainda têm) o costume de cobrirem bem seus corpos. Segundo Josefo (2009, p. 519) “como o costume dos persas não permite às mulheres se apresentarem diante de estrangeiros, ela decidiu não aparecer, embora o rei enviasse diversas vezes os eunucos para busca-la”.
Repercussão
A negativa de Vasti repercutiu rapidamente nas Satrapias do Império Persa e na capital (Susã). Naqueles dias o Império tremeu nas bases, por causa do disse-me-disse. As mulheres, obviamente, saudando o fato, enquanto os homens ficavam em pânico pela iminente ruptura do status quo dominante. Ou seja, de uma cultura patriarcal androcêntrica, misógina.
Vasti não procurava protagonismo. Até porque do ponto de vista do fatalismo persa, ela era coadjuvante de Assuero e do ponto de vista do relato bíblico, era coadjuvante de Ester, a verdadeira protagonista do relato bíblico. A exemplo do Livro de Ester, que fala muito pouco sobre a rainha Vasti, Josefo, na obra História dos Hebreus, dedica-lhe menos que duas páginas, demonstrando ser ela personagem secundária desse enredo androcêntrico.
A atitude da rainha Vasti não foi conspiratória. Ela queria apenas o reconhecimento do direito à dignidade. Foi uma mulher de vanguarda, sem ser feminista, segundo os padrões pós-modernos. Foi revolucionária, sem ser subversiva. Não houve conspiração da parte dela. Também não queria superar o rei, em poder. Nem subverter sua autoridade. O que ela queria, de fato, era ter sua dignidade reconhecida e respeitada.
Enquanto isto, no seu espaço de ‘macho alfa’ o rei celebra em grande estilo. Inebriado, quer pelo vinho, quer pelo próprio poder, manda chamar “a rainha Vásti para a mostrar, sem decência, diante de todos os comensais. A rainha recusa e prefere perder a posição real em vez da sua dignidade enquanto mulher” (BÍBLIA SAGRADA AFRICANA, 2014, p. 752).
As consequências da decisão de Vasti são inevitáveis. Aconselhado por um sábio chamado Memucam, o rei Assuero publicou um édito onde impõe que todos os “maridos deviam ser os senhores nas suas casas e mandasse cada um como era costume do seu povo” (Et 5,22). A rainha Vasti perdeu a coroa de cabeça erguida.
O papel da Igreja na luta pela igualdade de gênero
De propósito, mantenho esta reflexão fora do escopo teológico do texto, como, por exemplo, refletir sobre a ação de Deus na história de Israel por meio da judia Ester, desposada depois, por Assuero. Faço aqui, apenas uma análise do gesto de Vasti, puramente. E é sobre isto que me prendo.
A atitude de Vasti aponta para dois vieses fenomenológicos nas relações de gênero, nos séculos XX e XXI. Primeiro é a crescente e legítima luta pela dignidade feminina frente à dominação desproporcional do universo masculino. Segundo, é a onda mercantilista/utilitarista que expõe grande parte das mulheres à condição de ‘objetos’ em eventos lúdicos do nosso país.
Quanto à questão primeira, sempre ouço de preletores protestantes, furiosas investidas contra Vasti e, pasmem, a favor de Assuero. Hoje entendo esses discursos, infelizmente, como afirmação do machismo e expressão cultural que funcionam como adesivos colados sobre superfícies. Replicar um discurso milenarmente machista é um desserviço que a Igreja presta à injusta relação de gênero. Está, inclusive, na contramão dos ensinos de Jesus (PENHA & VIEIRA, 2016).
A cultura machista, tóxica, induz as mulheres, inconscientemente, a ‘assimilarem’ um mundo repleto de signos, caracteres e clichês propícios à dominação patriarcal, que as apresentam, indevidamente, como pessoas ‘mais fracas’, ‘submissas’ ‘domésticas’, passionais, entre outros. Ou, que só a cor rosa lhes pertence e só podem brincar com bonecas. Esse engenho visa manter ad aeternum, o patriarcado androcêntrico, como matriz cultural em relação às mulheres.
Os reflexos dessas concepções culturais, que minimizam o sexo feminino, são trágicos para as meninas, as adolescentes, as mães de família, a classe de trabalhadoras e, principalmente as esposas. Em certos países como Coréia do Norte, Myanmar, Congo, Afeganistão, e outros, seria melhor, inclusive, que a mulher nem nascesse, tal a situação de humilhação que ela enfrenta nesses lugares.
Esses signos machistas, com toda sua carga de simbolismos, são autenticados pelas hermenêuticas clericais, capazes de desencadear ondas de violência contra a mulher, que vão além do que pode e deve tolerar por pessoas civilizadas. Abro a Internet e contemplo o mundo real feminino. Nela leio que “o Brasil é o pior país da América do Sul em termos de oportunidades para o desenvolvimento de meninas”, segundo a ONG Save the Children, dos EUA. No mais, ocupa a 102ª posição do Índice de Oportunidades para Garotas.
A mesma ONG apresenta o Brasil com números elevados de gravidez na adolescência e casamento infantil e um dos países que “mais impõe barreiras ao empoderamento feminino, privando as mulheres de oportunidades”. Logo o Brasil, penso comigo mesmo, país cuja religião predominante é o cristianismo, teoricamente a religião da paz e da fraternidade.
O preconceito, a discriminação, a negação dos direitos às mulheres etc., causam os tipos de violências: direta e indireta. Entre estas estão a gravidez precoce, abandono da escola, trabalhos domésticos excessivos, prostituição infantil, espancamento e assassinatos de mulheres, salários aviltados etc. segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) em 2014, compilados pelo Instituto Unibanco (cf estas informações no endereço eletrônico, nas referências).
Ao revitalizar ciclicamente a cultura do machismo por meio da apologia ou, então, do silêncio e da negação explícita dos direitos que as mulheres têm, a Igreja legitima, pelo princípio divinatório, dois aspectos extremamente deletérios e indignos para uma sociedade sóbria e bem ordenada. São eles: a) reproduz para as gerações que se sucedem a ideia da mulher como ‘objeto’; b) passa ao homem, por conseguinte, a ideia que ele é ‘dono’ da mulher.
Tanto o aspecto ‘a’ quanto o ‘b’ sedimentam uma espécie de estrutura mental social, ou ‘inconsciente coletivo’, entre ambos os sexos. Essa estrutura mental é tão poderosa que os homens são instados ao condicionamento de dominantes e as mulheres ao condicionamento de dominadas. Ambos, condicionamentos irreflexos.
Em resumo, palmas para a Rainha Vasti, que não abriu mão da sua dignidade e lutou por ela.